Em uma era em que as carruagens a cavalo ainda ditavam o ritmo das ruas europeias, dois engenheiros visionários ousaram imaginar um futuro sobre rodas. Fundada em 1887 por René Panhard e Émile Levassor, a Panhard et Levassor - assim mesmo, com o ‘et’ em francês, marcando a parceria inseparável dos sócios - emergiu como a primeira grande montadora de automóveis do mundo. Não por acaso, seu legado moldou os padrões que ainda regem os veículos de hoje, desde o motor frontal até a transmissão moderna. Mas, como tantas histórias de inovação, a da Panhard é uma tapeçaria tecida com triunfos, tragédias e uma lenta eclipse no crepúsculo do século XX.
Tudo começou em uma fábrica de ferramentas em Ivry-sur-Seine, nos subúrbios de Paris. Panhard, um mecânico habilidoso, e Levassor, um engenheiro brilhante, inicialmente se dedicavam à produção de peças para motores a gasolina. O ponto de virada veio em 1886, quando obtiveram licença para fabricar motores Daimler, o pioneiro alemão Gottlieb Daimler. Três anos depois, em 1890, o primeiro automóvel Panhard et Levassor rodou pelas estradas francesas: um veículo de tração traseira, com motor centralizado na frente e transmissão por corrente - o embrião do que chamamos de ‘Système Panhard’, um arranjo que revolucionou a arquitetura automotiva. Vendido por 3.500 francos, ele custava uma fortuna, mas atraía a elite ávida por velocidade.
Os anos 1890 foram de glória nas pistas. Em 1894, no rally Paris-Rouen - o primeiro concurso automotivo da história -, um Panhard de 4 cv de potência, equipado com um dos primeiros volantes já vistos, conquistou o pódio graças a Alfred Vacheron.
No ano seguinte, na exaustiva Paris-Bordeaux-Paris, dois modelos de 1.205 cm³ cruzaram a linha de chegada em primeiro e segundo lugares, pilotados pelo próprio Levassor em uma jornada solo de 48 horas e 45 minutos.
Mas o destino reservava uma sombra: em 1896, durante a Paris-Marseille-Paris, Levassor sofreu um acidente fatal ao desviar de um cachorro, morrendo um ano depois aos 54 anos. Sua partida precoce marcou o fim da dupla fundadora, mas não da empresa.
Sob a gestão de Arthur Krebs, que assumiu em 1897 e permaneceu até 1916, a Panhard et Levassor floresceu como uma potência industrial. Krebs transformou a companhia em uma das maiores e mais lucrativas da Europa pré-Primeira Guerra Mundial, exportando para colônias francesas.
Entre 1913 e 1920, os modelos 18CV e 20CV foram escolhidos como carros oficiais do presidente Raymond Poincaré, simbolizando o prestígio da marca.
Durante o conflito global de 1914-1918, a fábrica trocou engrenagens por munição: produziu milhares de caminhões militares e motores V12 para aviões, garantindo sua sobrevivência em tempos sombrios.
A década de 1930 trouxe renovações audaciosas. O Dynamic, lançado no Salão de Paris em 1936, era uma obra de ficção científica: carroceria aerodinâmica com faróis embutidos, chassi de alumínio e, em uma ousadia que chocou o público, volante central para acomodar três passageiros na frente.
Projetado pelo estilista Louis Bionier, o modelo prometia 75 cv de potência em sua versão 140, mas o volante excêntrico - uma tentativa de ‘senso comum’ na transição para direção à esquerda - foi criticado e substituído em 1939. Ainda assim, mais de 2.200 unidades saíram da linha até a eclosão da Segunda Guerra Mundial interromper a produção.
O pós-guerra foi de resiliência e fusões. Em 1955, a Panhard se uniu à Hotchkiss, formando a Société Panhard et Levassor-Hotchkiss, mas a concorrência feroz de gigantes como Renault e Citroën cobrou seu preço. A empresa apostou em designs leves e motores de dois tempos, como no icônico 24 de 1963 - um coupé vanguardista com inovações como freios a disco e suspensão independente, mas amarrado a componentes obsoletos que refletiam as dificuldades financeiras.
Produzido por apenas quatro anos, ele marcou o fim da era de carros de passeio: em 1967, a Citroën adquiriu a Panhard, redirecionando a fábrica para veículos utilitários. A produção de automóveis leves cessou, e o nome, outrora sinônimo de velocidade, sobreviveu apenas em tanques militares leves, como o lendário AML-90, usado em conflitos globais até os anos 2000.
Hoje, aos 138 anos de sua fundação, a Panhard et Levassor evoca uma era de ousadia mecânica. Seus inventos - do radiador frontal à transmissão deslizante - pavimentaram o caminho para a indústria bilionária que vemos nas estradas. Em um mundo de elétricos e autônomos, a lição da pioneira francesa ressoa: a inovação acelera, mas a história, como um motor bem regulado, nunca para de roncar.