CITROËN 2CV: UM AUTOMÓVEL ÚNICO
Em 1948, no Salão de Paris, esperava-se com grande expectativa a chegada de um novo modelo da Citroën, seu primeiro lançamento após a Segunda Guerra Mundial. O burburinho que se ouvia no meio dos jornalistas automotivos e dos entusiastas apontava para um veículo pequeno e prático, pensado para o campo. Claro, com tração dianteira. Ninguém esperava grandes alardes técnicos ou estéticos. No entanto, todos puderam ver o quanto estavam errados quando Pierre Boulanger, Diretor Geral da Citroën e criador desse novo conceito de mobilidade, retirou o véu que escondia um carro surpreendente, que Boulanger apresentou como “o carro do futuro”.
As origens de um mito
Para chegar a este momento, que entrou para a lenda, foi preciso percorrer um longo caminho. É preciso voltar ao passado, especificamente a 1935. O próprio Pierre Boulanger, então diretor do Escritório de Estudos da marca, decidiu passar um fim de semana no campo. Sentado em seu Traction ao lado da praça de um vilarejo, viu os agricultores levando seus produtos para o mercado. Todos usavam carroças, puxadas por mulas, cavalos ou bois. Ao retornar a Paris, teve uma epifania: era necessário criar um veículo que permitisse aos camponeses franceses substituírem a carroça ou a mula pelo carro. Isso significaria mais vendas tanto para a Citroën quanto para a Michelin, que na época era o principal acionista da empresa.
Imediatamente, lançou o projeto TPV (Très Petite Voiture - Carro Muito Pequeno), capitaneado pela dupla que criou o Citroën Traction Avant, o primeiro veículo de tração dianteira comercializado de forma massiva: André Lefebvre, na parte técnica, e o escultor Flaminio Bertoni, para o design, embora, nas palavras de Boulanger, a estética não fosse uma prioridade.
O caderno de encargos era claro e pensado claramente para o mundo rural, embora alguns de seus pontos pudessem servir para os SUVs atuais: quatro rodas sob um guarda-chuva. O TPV deveria ser capaz de transportar uma cesta de ovos por um campo sem quebrar nenhum, além de 50 kg de mercadorias. Além disso, deveria ser fácil de conduzir por alguém sem experiência ao volante, ter baixos custos de manutenção e com um consumo de, no máximo, 33 km/l. Claro, apesar de sua vocação agrícola, deveria equipar a joia da coroa da marca: a tração dianteira.
Apesar de seu ‘target’ com baixos recursos econômicos, a Citroën não poupou esforços para desenvolver este modelo. Foram pensadas e testadas toda sorte de inovações tecnológicas e de design. Assim, foram ensaiados braços de suspensão de magnésio, portas circulares, faróis inspirados nos vagalumes. Deixar o veículo mais leve se tornou uma obsessão: o teto era de tecido, as janelas de mica e a carroceria de alumínio ondulado. Foram rejeitados os protótipos que ofereciam conforto excessivo. O único capricho concedido foi no estofamento, onde se atendeu à recomendação da esposa de Boulanger.
Esses primeiros trabalhos concretizaram-se com um primeiro protótipo muito peculiar: o Cíclope. Com um único farol, tinha uma carroceria inspirada na aviação, ondulada e fabricada com uma liga de alumínio, bancos tipo rede presos ao teto por cabos, e um motor de 2 cilindros boxer de 375 cm³ refrigerado por água.
Motor? Que motor?
Os participantes da cerimônia de apresentação do Citroën 2CV e todos os que visitaram o Salão durante os dias seguintes ficaram perplexos ao ver a estética peculiar deste modelo. Houve comentários para todos os gostos. Desde “horrível”, “estranho” ou “espantoso” até “divertido” ou “único”. A imprensa, por sua vez, não foi muito indulgente com seu design. No entanto, nem a crítica nem o público tiveram a oportunidade de se surpreender com seu motor, já que nenhuma das 3 unidades expostas o tinha.
Por trás dessa ausência havia uma mudança técnica de última hora. A intriga foi resolvida no ano seguinte, quando um 2CV que revelava todos os segredos de seu motor de 375 cm³ refrigerado a ar, com transmissão de 4 velocidades e 9 cv de potência, foi o rei e senhor do estande da marca.
Em julho de 1949, começou a produção e os clientes deixaram os críticos em uma posição muito desconfortável: após os primeiros meses no mercado, o prazo de espera chegou a três anos. O público percebeu imediatamente o que os críticos não apreciaram: o 2CV era o carro ideal para necessidades muito distintas. Desempenhava-se muito bem na cidade, circulava com facilidade por caminhos não asfaltados, era espaçoso para seu tamanho, tinha quatro portas e era muito mais econômico de usar e manter do que outros modelos na mesma faixa de preço.
O 2CV era um carro simples, mas de forma alguma áspero. Tão bem projetado e construído desde o início, que em sua evolução não houve mudanças significativas. O motor ganhou cilindrada e potência, embora sempre tenha mantido um consumo muito baixo. Os freios a disco nas rodas dianteiras não foram necessários até os anos 80, devido ao fato de o 2CV sempre ter sido muito leve.
Em um país em reconstrução, que aspirava a um maior bem-estar, seu lançamento comercial chegou no momento oportuno. Disponível, a princípio, exclusivamente na forma de sedan conversível, a partir de 1950 também foi oferecido na versão furgão. Mais de 5 milhões de unidades seriam vendidas até o fim de sua produção em 1990.
As diferentes gerações do Citroën 2CV foram ganhando adeptos. Assim como na França e em outros países onde foi comercializado, milhares de pessoas, que não precisavam de um carro tão econômico, adotaram-no por serem atraídas por seu design, sua filosofia e sua simplicidade, que permitiam adaptá-lo ao gosto de cada um. Tornou-se sinônimo de liberdade e de um estilo de vida afastado das amarras e limitações do passado.
Sempre na moda
Assim como seus clientes, o Citroën 2CV também evoluiu. Se, como vimos, nos primeiros anos só era fabricado em cinza, depois houve uma paleta extensa de cores, algumas muito vivas. As diferentes séries especiais, como o Sport, o Charleston ou o Cocorico, deram um toque adicional de estilo.
Tudo dentro de uma estética que se manteve quase inalterada durante 42 anos. As mudanças mais notáveis na carroceria foram o sentido de abertura das portas em 1964 ou a terceira janela lateral em algumas versões. De resto, apenas adições de equipamentos (que inicialmente seriam considerados luxos) e mudanças cosméticas nos faróis, para-choques ou grade.
Nômade e aventureiro
Também não estava nos planos dos criadores do Citroën 2CV que seu carro rural tivesse vontade de ver o mundo ou viver a adrenalina da competição. No entanto, a grande aceitação social deste modelo e suas características excepcionais ‘off-road’, ideais para andar por campos ou estradas de terra, o tornaram o companheiro ideal para aventureiros dispostos a dar a volta ao mundo por pouco dinheiro ou para pilotos com poucos recursos, mas com muita sede de corridas.
Organizados pela marca, foram realizados grandes raids como o Paris-Kabul-Paris de 1970 ou o Raid África de 1973 (8.000 km através do Saara), onde milhares de jovens de vários países europeus testaram sua habilidade ao volante, sua perícia mecânica e sua capacidade de se adaptar às diferenças culturais.
Apesar de suas características limitadas, o Citroën 2CV também teve, e ainda tem, uma forte vertente esportiva, com exemplos como o campeonato 2CV Cross, que ainda é disputado atualmente na França.
O Citroën 2CV manteve-se saudável durante os anos 70 e 80, mas as regulamentações ambientais e de segurança foram limitando suas vendas em cada vez mais países. Além disso, sua fabricação continuava sendo manual, o que elevava seu custo em comparação com os modelos da época, onde os robôs desempenhavam um papel cada vez mais importante.
Após o fechamento da fábrica de Levallois-Perret nos anos 80, o Citroën 2CV passou a ser fabricado em Mangualde (Portugal), de onde, às 16 horas do dia 27 de junho de 1990, saiu o último de sua linhagem, após 41 anos de vida comercial e mais de 5 milhões de unidades vendidas em todo o mundo. Foi o ponto final de uma trajetória única, que marcou a memória de várias gerações com sua silhueta arredondada. Mais do que um símbolo, o 2CV é uma forma de vida.
A publicidade do Citroën 2CV
Atualmente, a imagem corporativa é a face visível da identidade de uma empresa. O 2CV e seus derivados continuam sendo um elemento distintivo da Citroën tão importante quanto o Duplo Chevron.
O primeiro folheto do Citroën 2CV foi um pequeno folheto em cor sépia, desenhado pelo próprio Boulanger, com um texto mínimo de frases curtas e eficazes acompanhado de pequenas ilustrações.
A partir dos anos 60, a economia dos países europeus melhorou. O consumidor evolui e exige mais. As férias pagas tornaram-se comuns. A publicidade se tornou extremamente agressiva. O primeiro slogan é de 1963: ‘Liberdade em 2CV’. Depois veio o famoso ‘Mais do que um carro, um estilo de vida’.
Claude Puech, diretor e mago das ideias; Wolgensinger, que as expressa. Naquela época, a equipe de Marketing encontrava os slogans que os citroenistas fizeram seus. Comparava-se com uma tartaruga que é feliz, com um camelo que suporta tudo, comparando-se sem complexos com carros de segmentos superiores.
Os anos 70, com a crise do petróleo, foram muito ruins para a indústria automobilística em geral, trazendo outra frase acertada: ‘O que por menos, dá mais’. Tornou-se a imagem do anticonsumo, do anticarro.
Nos anos 80, o ‘revival’ e a personalização se impõem. São fabricadas séries limitadas especiais, entre as quais se destaca o Charleston. O slogan dizia ‘Vive do ar’. Uma garota passeava pela beira da praia a bordo de um Charleston, de pé, envolta em um longo cachecol e com o cabelo ao vento. O ar retro se impõe.
A Citroën explora todos os recursos publicitários. Entre eles, o humor e as tiras de quadrinhos foram um veículo adequado para a juventude, tão acostumada com a mensagem visual. Para os franceses e belgas, o mais representativo foi o ‘Viagem ao planeta 2CV’, que promovia o 2CV 6 com Tintim como protagonista.
O folheto espanhol terminava com a frase ‘2CV, cara!’. Na Inglaterra, o The Guardian publicava uma tira especial. Com um grafismo mais adulto, foi feito um quadrinho para o 2CV, ‘Contra a cidade da fumaça’. Também houve uma historinha conjunta para o CV, o Dyane e o Méhari. Cada uma delas mostrava graficamente o específico do modelo na língua de cada país. Recorria-se ao linguajar popular. O 2CV aparece até mesmo no gelo das altas montanhas do Himalaia, fugindo do Homem das Neves.
O 2CV simboliza duas coisas: liberdade e durabilidade. Por isso, o encontramos como protagonista de campanhas de outras marcas, desde a Durex que anunciava seu produto, até Miguel Bosé montado em um 2CV para um videoclipe musical.
A gravadora EDIGSA, criada em 1962 para promover o movimento da ‘Nova Canção’ catalã, lançou uma campanha na qual associava capas de discos de cantores do momento com os novos cantautores, tudo isso ao fundo de uma paisagem campestre com uma fila de 2CV.
O 2CV foi companheiro de muitas marcas. A Coca-Cola, os cigarros Gauloise exploraram o estereótipo do permanente, do carro para pessoas sem complexos. “Vista como quiser”, diz a Burberry, enquanto seus modelos passeiam em um 2CV.
O Citroën 2CV e a cultura
Este carro, que identifica o proprietário com um jeito de ser, tem sido o companheiro de personagens da literatura e do cinema em todo o mundo. O sucesso de um filme, ‘Somente para Seus Olhos’, protagonizado por James Bond, levou ao lançamento de uma série limitada.
O Citroën 2CV faz parte das paisagens urbanas e rurais de muitos filmes franceses. Claro, Louis de Funès em sua série ‘O Gendarme’ protagoniza aventuras divertidas e perseguições em muitos 2CV. Também aparece em ‘Traffic’ de Jacques Tati, onde satiriza o mundo do tráfego e os motoristas.