COMO A TOYOTA SALVOU A PORSCHE DA FALÊNCIA EM 1993

A Porsche esteve à beira da falência em várias ocasiões. A marca de Zuffenhausen atravessou tantos momentos doces como amargos, e sempre conseguiu salvar os móveis, reinventar-se e voltar ao caminho da prosperidade. No entanto, no início da década de 1990 uma série de fatores quase acabam extinguindo a marca alemã do mercado. Por sorte, a Toyota salvou a Porsche da bancarrota em 1993 e o Boxster de primeira geração consolidou a recuperação.
Em Zuffenhausen haviam vivido tempos de fartura nos anos 80, com mais de 50.000 unidades vendidas anualmente. Isso era possível graças à variedade dentro da linha, que incluía modelos como o icônico 911 e os transaxle (924, 928, 944 e 968). Entre 1976 e 1995, a Porsche conseguiu vender mais de 400.000 unidades destes modelos com o motor dianteiro e a transmissão atrás. No entanto, a tendência era de queda. As vendas caíam, os lucros evaporavam e a linha ficava obsoleta.
A crise econômica e financeira de 1992, originada do estouro da bolha imobiliária no Japão, provocou uma delicada situação que afetava particularmente a Porsche. A isso era necessário somar “uma organização empresarial e uma estrutura de produção completamente obsoletas”.
A Porsche havia passado a produzir das 58.625 unidades em 1986 para apenas 15.082 em 1993, das quais pouco mais de 3.000 correspondiam ao seu mercado principal, os Estados Unidos. Isso teve um impacto negativo nos lucros da empresa, que também desceram de 258 milhões de dólares para prejuízos de mais de 180 milhões de dólares.
A recessão havia paralisado as vendas e os custos estavam fora de controle. O panorama era sombrio para a Porsche e “evitar sempre os rumores sobre a aquisição por parte da BMW, Mercedes-Benz ou Volkswagen”, como explicava o Chicago Tribune em um artigo de 1996, se convertia no objetivo número um na época (curiosamente, o Grupo Volkswagen acabaria adquirindo a Porsche entre 2009 e 2011 depois do endividamento desta última tratando de adquirir ações da Volkswagen AG).
A figura de Wendelin Wiedeking
Para entender o primeiro passo para salvar a Porsche da falência é preciso conhecer quem foi a figura chave na recuperação: Wendelin Wiedeking. Engenheiro de profissão, Wiedeking começa a trabalhar na Porsche dentro da área de produção no início dos anos 80. Cinco anos depois sai da Porsche para dirigir a Glyco Metallwerke, uma empresa especializada na fabricação e distribuição de peças para a indústria automobilística.
É aqui onde Wiedeking tem seu primeiro contato com os métodos de fabricação da indústria automobilística japonesa. Em 1991 volta à Porsche como diretor de produção e se coloca sob as ordens de Arno Bohn, responsável máximo da empresa entre 1990 e 1992. O agora diretor de produção trata de mostrar à cúpula diretiva da Porsche como a marca era ineficaz em termos de fabricação de automóveis.
Wendelin Wiedeking organiza uma viagem ao Japão com engenheiros e trabalhadores para visitar as fábricas da Toyota, Nissan e Honda. Os japoneses mostraram abertamente quais eram seus métodos de trabalho e, em viagens posteriores, a empresa de Zuffenhausen descobriu onde eles se encontravam em relação aos disciplinados e eficientes fabricantes japoneses.
Cerca de 20% dos componentes chegavam com três dias de atraso na Porsche, enquanto que um terço das entregas não tinha a quantidade solicitada e 10.000 peças por milhão eram defeituosas. Em comparação, a Toyota recebia todas as entregas dentro do prazo, com o número de componentes acordado e havia apenas 5 peças defeituosas por milhão de unidades. Neste ano de 1992, Wiedeking acaba sucedendo Bohn à frente da empresa.
A segunda figura chave nesta história é a de Taiichi Ohno. Este engenheiro industrial japonês foi o responsável em projetar o sistema de produção da Toyota, conhecido como ‘Just in Time’, após a Segunda Guerra Mundial, e de colocá-lo em prática na década de 1960. Este método acabaria se estendendo a todas às marcas japonesas e contribuiria para o desenvolvimentismo da indústria do Japão na segunda metade do século XX.
Ohno tinha três discípulos: Yoshiki Iwata, Chihiro Nakao e Akira Takenawa. Juntos, fundaram a consultoria Shingijutsu Global Consulting (SGC) em 1987, com o objetivo de promover o sistema de produção da Toyota de Taiichi Ohno em todo o mundo. A SGC ofereceu seus serviços de consultoria para cerca de 160 clientes em todo o mundo, incluindo indústrias como a automobilística, a eletrônica e a gráfica.
Wiedeking finalmente contrata, não sem antes insistir em diversas ocasiões diante das constantes negativas, os serviços da SGC. Decide trazer os japoneses para fazer uma visita à fábrica da Porsche e o que eles encontraram não agradou em nada. “Onde está a fábrica? Isso é um armazém. Não vejo trabalhadores, apenas macacos trepando por algumas prateleiras”, perguntou Chihiro Nakao na primeira vez que chegou à planta de Zuffenhausen.
A Porsche havia instalado algumas prateleiras recentemente, de 2.5 metros de altura, onde podiam armazenar peças para 28 dias de produção de automóveis. “Era um túnel escuro onde os trabalhadores passavam a metade do tempo subindo e descendo para pegar peças”, comentou Nakao.
O método ‘Just in Time’ japonês
Os ex-funcionários da Toyota sugeriram à Porsche que diminuísse as prateleiras para 1.3 metros de altura e reduziram assim o tempo que os trabalhadores passavam subindo e descendo escadas para obter as peças. Os membros da consultoria japonesa impuseram o método ‘Just in Time’ que evitava que se armazenasse um grande estoque de peças, o que ocupava espaço, requeria manutenção e consumia energia.
Assim, o número de peças disponíveis foi reduzido de 28 para 7 dias de produção, o que provocou uma mudança na relação da Porsche com seus fornecedores. Além disso, foram aperfeiçoados os percursos que os trabalhadores deviam fazer na linha de montagem. Esta melhoria logo se refletiu na velocidade da montagem, reduzindo a um terço o tempo necessário para fabricar um Porsche 911 em apenas um ano.
Mudanças na linha de montagem e no organograma da Porsche
A linha de montagem foi a que mais mudanças recebeu. Uma delas foi a fabricação com zero defeitos. “O trabalho tradicional pelo qual a Alemanha se tornou famosa era o acabamento e o ajuste de peças para que encaixassem perfeitamente”, segundo as declarações de Daniel Jones, professor da Escola de Negócios de Cardiff, em Gales, relatadas pelo Chicago Tribune em 1996. “Mas isso era uma perda de tempo. As peças deveriam ter sido bem-feitas na primeira vez. Portanto, o novo ofício é o ofício de pensar em formas inteligentes de tornar as coisas mais simples e fáceis de montar. É o ofício de criar um fluxo ininterrupto de fabricação”.
As melhorias realizadas pelos discípulos de Taiichi Ohno permitiram que no dia 27 de julho de 1994 fosse fabricado o primeiro Porsche que não precisou ser retocado no final da linha de montagem. Deste modo, a Shingijutsu conseguiu que o tempo de montagem de um carro passasse de 120 para 72 horas. O número de erros por carro também foi reduzido em 50%, para uma média de apenas três erros por veículo.
Os japoneses também fizeram alterações no organograma da Porsche. Foi despedido um terço dos gerentes e ao resto foram dadas novas atribuições para que tivessem que aprender novas funções. Também houve dispensas na fábrica. No total a força de trabalho foi reduzida em 19%, passando de 8.400 empregados em 1992 para 6.800 trabalhadores um ano mais tarde.
E por último, os consultores japoneses conseguiram melhorar a comunicação interna da empresa. Agora, os trabalhadores da linha enviavam cerca de 2.500 sugestões por mês, uma média de 12 sugestões por empregado/ano (frente às 0.06 sugestões por empregado/ano antes de 1993).
Reestruturação da linha de modelos
A presença dos ex-funcionários da Toyota não só havia afetado a linha de montagem e a metodologia de trabalho dos empregados da Porsche, como também significou uma reestruturação da carteira de produtos da empresa. No início dos anos 90, a Porsche oferecia modelos de 4, 6 e 8 cilindros, com motores dianteiros (transaxle) e traseiros. Pero, para a Shingijutsu, esta estratégia de modelos não fazia sentido em termos de rentabilidade.
Por essa razão, a consultoria japonesa decide eliminar os modelos com motor dianteiro em 1995 e concentrar os esforços da empresa no 911. Porém havia mais. No Salão de Detroit de 1993, a Porsche havia apresentado um concept car de um pequeno modelo de dois lugares conversível com motor central, o Porsche Boxster Concept.
Os consultores decidiram que este projeto teria futuro e devolveria a Porsche ao caminho verde da prosperidade econômica. Assim, em 1996 veria a luz o Porsche Boxster 986, um modelo que se tornaria um catalisador nas ventas.
Além disso, a empresa conseguiu reduzir os custos ao fundir o desenvolvimento do Boxster 986 e o 911 (996), o primeiro refrigerado por água. Os motores de ambos os modelos eram praticamente iguais, exceto a cilindrada, e inclusive a parte frontal com os controvertidos faróis era quase idêntica. Esta decisão não só permitia baratear o desenvolvimento de dois carros, como dava ao novo modelo, o Boxster, credibilidade em relação aos potenciais compradores ao herdar parte das peças e a linguagem de design do todo-poderoso ‘noveonze’.
A Porsche viveria anos de lucros após as mudanças realizadas pelos herdeiros do sistema da Toyota. Então tudo voltaria a dar errado novamente, mas a chegada do Porsche Cayenne devolveu a água ao seu curso.