O TREVO BELGA NAS RUAS DE PARIS: A SAGA DO GEORGES RICHARD VIVINUS DE 1900
Era o ano de 1900, e o mundo rodava sobre rodas improvisadas, poeirentas e cheias de promessas. Enquanto a Exposição Universal em Paris exibia torres de luz elétrica e pavilhões de ferro, um humilde veículo cruzava as calçadas de paralelepípedos da capital francesa, carregando o nome de um pioneiro local e o DNA de uma invenção belga. O Georges Richard Vivinus - ou simplesmente ‘o Vivinus parisiense’ - não era apenas um carro; era um embaixador da mobilidade acessível, um trevo de quatro folhas mecânico que brotava de uma licença transfronteiriça, simbolizando a efervescência de uma era em que o automóvel saía das sombras das bicicletas para conquistar as avenidas.
Tudo remonta ao alvorecer de 1899, em Schaerbeek, um bairro operário nos arredores de Bruxelas, onde o visionário Alexis Vivinus (1860-1929) - ex-fabricante de bicicletas e importador ávido da Benz - fundava a Ateliers Vivinus SA. Vivinus, um homem de mãos calejadas por pedais e correntes, havia começado a experimentar com motores em 1895. Seu primeiro golpe de mestre? Uma voiturette leve, belt-driven, equipada com um motor monocilíndrico vertical de 785 cc, refrigerado a ar, produzindo modestos 3.5 cv. O propulsor, montado transversalmente na frente, transmitia potência por correias para uma caixa de 2 velocidades integral ao eixo traseiro - uma simplicidade engenhosa que permitia velocidades de até 40 km/h, o suficiente para deixar para trás carroças e bondes. Apresentada em meados de 1899, a criação de Vivinus era barata de produzir e ainda mais barata de vender: um veículo para o burguês comum, não só para os nobres endinheirados.
Mas Vivinus era astuto. Em vez de monopolizar sua invenção, ele a licenciou para gigantes vizinhos, transformando-a em um fenômeno europeu. Na Inglaterra, a New Orleans Cycle & Motor Co., em Twickenham, montava-as em uma ‘fábrica’ minúscula, rebatizando-as de New Orleans - possivelmente importadas prontas da Bélgica e apenas remarcadas. Na Alsácia alemã, a De Dietrich, em Niederbronn, adaptava-as para o mercado alemão. E em Paris, o epicentro da febre automotiva, o acordo mais simbólico caiu nas mãos de Georges Richard, o mecânico-ciclista que havia trocado pedais por pistões apenas três anos antes.
Georges Richard, nascido em 1863 na efervescente Paris, já era uma lenda modesta em 1900. Com o irmão Maxime, ele havia erguido a Société des Anciens Établissements Georges Richard em Ivry-Port, um subúrbio industrial ao sul da capital. Começaram com bicicletas de garantia vitalícia e evoluíram para cópias da Benz em 1897 - robustas, mas caras. A licença Vivinus, adquirida naquele fatídico 1900, foi o sopro de ar fresco que a empresa precisava. Sob o selo Georges Richard, o modelo se chamava simplesmente ‘Vivinus’ ou ‘Type Vivinus’, com variações que iam do monocilíndrico de 3 cv (alcance máximo de 40 km/h) a um bloco bicilíndrico de 10 cv, mais parrudo, com motor horizontal à frente, correia central para a transmissão e correntes laterais aos eixos traseiros. Construído para até seis assentos em configurações tonneau de entrada traseira, era um carro ‘pesado’ para a época, mas acessível - vendido por preços equivalentes a alguns meses de salário de um engenheiro, atraindo taxistas, médicos e aventureiros das corridas.
Imagine a cena: uma manhã chuvosa de outono em Ivry-Port, 1900. Operários de macacão sujo de graxa montam chassis de aço leve, enquanto o cheiro de óleo quente se mistura ao vapor das forjas. O emblema do trevo de quatro folhas - herança das bicicletas Richard - é estampado no radiador, um talismã de sorte em um mundo onde pane era sinônimo de drama. Esses carros não eram meros transportes; eram estrelas de competições incipientes. Georges, o piloto destemido, os levava a pistas de terra, colhendo vitórias em corridas locais como Marseille-Nice, onde um modelo leve de 1898 já havia brilhado na categoria voiturette. O Vivinus de 1900, com sua tração por correia e freios mínimos, era veloz para sua classe - até 56 km/h no twin-cylinder -, mas traiçoeiro: correias que estalavam, poeira que cegava, e o ronco primal de um motor exposto ao vento.
O impacto foi imediato e transnacional. Vendidos na França como Georges Richard, esses veículos pavimentaram o caminho para a expansão da marca. Em 1901, o engenheiro Henri Brasier - fugido da Mors - juntou-se aos irmãos, mantendo a produção do Vivinus enquanto projetava modelos maiores, inspirados na Panhard, com motores de 10 a 40 cv e tração por corrente. Os carros foram rebatizados Richard-Brasier em 1904, culminando em glórias como as vitórias consecutivas na Gordon Bennett Cup - a ‘Copa do Mundo’ das corridas da época, fundada pelo milionário americano James Gordon Bennett Jr. Mas o idílio durou pouco. Desentendimentos financeiros e criativos explodiram em 1904: um acidente grave de Georges em uma pista, seguido de uma briga judicial amarga com Brasier, que exigia o banimento do sobrenome ‘Richard’ da indústria. Georges venceu nos tribunais, mas o custo emocional foi alto - ele jurou nunca mais vincular seu nome a automóveis sob essa bandeira.
O Vivinus, porém, sobreviveu como um fantasma resiliente. Produzido até 1902 nas linhas de Ivry-Port, ele representou a ponte entre a era das voiturettes e os gigantes que viriam. Exemplares raros persistem: um 3 cv de 1900, vendido na Bélgica e preservado por 42 anos, participa de rallys como o London-to-Brighton; outro twin-cylinder de 10 cv, o único sobrevivente do Model 5, cruza estradas inglesas com seis assentos e história para contar. Até nas Filipinas, um Georges Richard de 1900 - importado pela La Estrella del Norte - tornou-se o primeiro automóvel das ilhas, um pedaço de Paris no Pacífico.
Mais de um século depois, em um mundo de baterias silenciosas e autonomias digitais, o Georges Richard Vivinus de 1900 sussurra lições de humildade mecânica. Ele não revolucionou o design como um Peugeot ou um Mercedes-Benz, mas democratizou as quatro rodas - uma licença belga que cruzou fronteiras, um trevo que floresceu em solo francês. Em meio à poeira das pistas antigas, sua história nos lembra: os verdadeiros pioneiros não constroem impérios eternos, mas faíscas que acendem revoluções. E, como uma correia bem tensionada, o legado de Vivinus e Richard ainda gira, leve e incansável.