No coração das Midlands inglesas, onde o clangor das forjas de armamentos ecoava como um hino à precisão vitoriana, uma empresa nascida de bicicletas e balas ousou pisar no acelerador da era motorizada. A Enfield Autocar Company Ltd, fundada em 1906 como filial da Enfield Cycle Company, representou a ambição efêmera de transformar o ‘Made Like a Gun’ em rodas automotivas. De protótipos barulhentos em Hunt End a fusões desesperadas com a Alldays & Onions, sua história é um capítulo curto de inovação técnica e tropeços financeiros, que terminou em 1908, mas deixou ecos em coleções de clássicos e na lenda da Royal Enfield - outrora rainha das duas rodas, não das quatro.
A linhagem da Enfield remonta às raízes industriais de George Townsend & Co., uma fábrica de agulhas em Hunt End, Redditch, que em 1880 diversificou para componentes de bicicletas sob pressão financeira. Resgatada em 1890 pelos banqueiros, que instalaram Albert Eadie e o engenheiro Robert Walker Smith à frente, a firma renasceu como Eadie Manufacturing Company Ltd em 1892, mudando-se para Birmingham. Um contrato crucial com a Royal Small Arms Factory de Enfield, Middlesex, em 1893 - fornecendo peças de precisão para rifles Enfield -, inspirou o rebatismo para Enfield Manufacturing Company Ltd, e o slogan ‘Made Like a Gun’ tornou-se selo de qualidade para bicicletas robustas. Em 1896, uma subsidiária, a New Enfield Cycle Company Ltd, assumiu a montagem completa de ciclos sob a marca Royal Enfield, exportando para o Império Britânico. Mas o vapor da revolução mecânica soprava forte: em 1898, veio o primeiro quadriciclo motorizado, um híbrido de duas bicicletas com motor De Dion de 1.5 cv, apelidado de ‘Safety Bicycle with Engine Attached’. Em 1899, triciclos a vapor De Dion-Bouton rodavam pelas estradas de Worcestershire, e em 1901, a estreia de motocicletas Royal Enfield marcou a transição para o motorizado.
O nascimento da Enfield Autocar veio da expansão febril. Em 1902, o departamento automotivo da Enfield Cycle Company lançou seu primeiro carro: um light car de 6 cv monocilíndrico De Dion ou V-twin francês Ader, um veículo leve e acessível para a classe média vitoriana tardia. Mas o crescimento sobrecarregou a matriz, dedicada a motos e ciclos. Assim, em 1º de março de 1906, a Enfield Autocar Company Ltd foi registrada como subsidiária dedicada, com fábrica dedicada em Hunt End, Redditch. Sob direção de Smith e Eadie, a nova entidade focou em produção em massa de automóveis, deixando motos para a Cycle Company. Os modelos iniciais eram modestos, mas ambiciosos: o 6 hp single-cylinder voiturette, um compacto de 600 cc ideal para cidades, e o 10 hp twin-cylinder, equipado com motor side-valve Enfield de 1.200 cc, transmissão por eixo cardan (inovação sobre correntes) e chassi tubular de aço. Vendidos por 200-300 libras esterlinas, esses touring cars de quatro assentos prometiam 50-65 km/h em estradas vicinais, com radiadores redondos e lanternas acetileno que evocavam a herança ‘armada’ de precisão. Anúncios em feiras como o Stanley Cycle Show de 1906 exaltavam “o carro Enfield: durável como um rifle, ágil como uma bala”.
Os anos iniciais foram de otimismo técnico, mas sombras financeiras pairavam. Em 1907, a Enfield Autocar experimentou com protótipos de 15 hp, incorporando freios internos e suspensões aprimoradas, enquanto exportava para colônias australianas e indianas. A fábrica de Hunt End empregava 200 operários, produzindo cerca de 500 unidades anuais, competindo com rivais como Humber e Wolseley. Um episódio simbólico ilustra o potencial: em 1907, um 10 hp Enfield completou a London-Edinburgh Trial, uma prova de endurance que testava confiabilidade em terrenos lamacentos, ganhando elogios da Automobile Club of Great Britain por sua robustez. No entanto, a divisão automotiva da Enfield Cycle Company acumulava prejuízos - vendas lentas, custos altos de importação de motores franceses e recessão pós-1906. Eadie, sobrecarregado, vendeu a Eadie Manufacturing para a Birmingham Small Arms (BSA) em 1907, mas a Autocar permaneceu sob a Enfield Cycle.
O crepúsculo veio rápido e impiedoso. Em fevereiro de 1908, crises financeiras forçaram a Enfield Autocar à beira da falência: estoques encalhados, dívidas com fornecedores e competição de importados baratos como o Ford Model T (ainda incipiente na Europa). A salvação veio da Alldays & Onions Pneumatic Engineering Co., de Birmingham, que adquiriu a Autocar em 1907-1908, incluindo direitos de fabricação, marca e estoque. A fusão criou a Enfield-Allday em 1919, transferindo produção para Sparkbrook, mas sob o novo nome, os modelos Enfield evoluíram para luxuosos 12/40 hp de 1.750 cc, com motores Coventry-Simplex e carrocerias de alto padrão, vendidos por 450-550 libras esterlinas. A Alldays, pioneira em pneumáticos e compressores, via na Enfield uma chance de upscale, mas o pós-Grande Guerra trouxe inflação e demanda volátil. Em 1923, um 12/30 hp com transmissão de 4 velocidades foi lançado, mas apenas 100 unidades saíram antes da liquidação da Alldays em 1924. Ressuscitada como Alldays Motor Repair Ltd, a firma abandonou carros, focando em reparos - o último Enfield-Allday rolou da linha em 1925.
Hoje, enquanto elétricos zumbem pelas autoestradas de Worcestershire, a Enfield Autocar é uma nota de rodapé na epopeia da Royal Enfield, que sobreviveu via motos e migração indiana em 1955. Relíquias raras, como um 10 hp de 1907 no National Motor Museum de Beaulieu, atraem puristas que restauram seus motores side-valve com devoção. De agulhas em Redditch a fusões em Birmingham, a saga da Enfield Autocar nos recorda que, no automóvel britânico, a precisão de um rifle nem sempre basta para vencer a corrida das rodas - às vezes, é preciso um motor que não atire no próprio pé.