No coração industrial de Coventry, berço de tantas lendas da engenharia britânica, nasceu uma empresa que pedalou das trilhas ciclísticas para as estradas do mundo moderno. A Humber Limited, o fabricante de automóveis que um dia rivalizou com gigantes como a Wolseley, encerrou sua jornada em 1976, mas deixou um legado de inovação, luxo e resiliência que ainda ecoa em museus e coleções de clássicos. Fundada em 1868 por Thomas Humber como uma humilde oficina de bicicletas em Nottingham, a companhia evoluiu para se tornar sinônimo de qualidade mecânica, sobrevivendo a guerras, crises econômicas e fusões corporativas que moldaram a era dourada do automóvel britânico.
Tudo começou com as ‘máquinas de pedal’ que conquistaram o Império Britânico. Thomas Humber, um visionário de Coventry, estabeleceu sua primeira fábrica em Beeston, perto de Nottingham, em 1877, empregando rapidamente mais de 1.200 operários. Suas bicicletas, conhecidas pela robustez e pelo uso pioneiro de tubos de alumínio, tornaram-se um sucesso exportado para colônias distantes. Mas o ar de mudança soprava nos anos 1890: a febre da motorização chegava à Europa. Em 1887, a Humber & Co Limited foi incorporada e listada na Bolsa de Valores de Londres, um marco que injetou capital para ousadias maiores. Dois anos depois, em 1896, a empresa deu um salto audacioso ao construir seu primeiro protótipo de automóvel - um triciclo motorizado de três rodas - seguido de nove unidades de produção em série. Historiadores debatem, mas muitos creditam à Humber o título de pioneiro na produção em massa de carros na Inglaterra, um feito exibido com orgulho no Stanley Cycle Show de 1897.
Os anos iniciais foram de experimentação febril. Em 1898, veio o primeiro triciclo motorizado completo, e em 1901, o modelo Phaeton de quatro rodas, equipado com um motor monocilíndrico De Dion-Bouton francês e chassi de aço tubular. A companhia dividiu suas operações: a fábrica de Coventry produzia versões acessíveis, enquanto Beeston focava em luxuosos ‘Beeston-Humbers’. O portfólio cresceu rapidamente, do minúsculo Humberette de 600 cc - um biciclo motorizado de 5 cv apelidado de ‘voiturette’ - a potentes 6 cilindros de 6.0 litros. Em 1913, a Humber já era o segundo maior produtor de automóveis no Reino Unido, atrás apenas da Wolseley, com uma linha que ia de sedans familiares a modelos para a elite. No entanto, o fechamento da planta de Beeston em 1908, vítima de uma recessão, sinalizava as turbulências à frente: incêndios em 1896 e 1906 testaram a resiliência da firma.
A Primeira Guerra Mundial revitalizou a Humber, que forneceu motos e bicicletas ao Exército Britânico, além de carros civis adaptados. Pós-guerra, veio o boom - e o baque. Os anos 1920 trouxeram uma transição dolorosa: o público trocava pedal por rodas motorizadas, forçando rivais como Rover e Triumph a abandonar as bicicletas. A Humber resistiu, mas as crises econômicas a levaram à beira do abismo. Em 1929, uma fusão com a Hillman injetou fôlego, mas foi em 1931 que os irmãos William e Reginald Rootes assumiram o controle majoritário, transformando a Humber na holding do emergente Rootes Group. Sob sua liderança, a produção anual saltou para 200 mil veículos em 1960, incorporando marcas como Singer e Sunbeam.
O auge veio na década de 1930, com modelos que definiram o luxo acessível britânico. O Humber Snipe e o Super Snipe, lançados em 1938, combinavam motores de 6 cilindros de 4.0 litros (100 cv) com interiores suntuosos, influenciados pelo estilo ‘transatlântico’ americano. O Hawk, de 4 cilindros, era o irmão mais prático. Esses carros, com sua reputação de durabilidade e acabamento impecável, tornaram-se favoritos de empresários e burocratas. A Segunda Guerra Mundial elevou a Humber a ícone militar: produziu veículos blindados leves, como o Humber Armoured Car, e staff cars pesados. Nenhum episódio simboliza melhor essa era que a dupla de Super Snipes abertos construídos para o marechal Bernard Montgomery. Batizados de ‘Old Faithful’ e ‘Victory Car’, esses robustos tourers com pisos à prova de minas e tanques de longo alcance acompanharam o comandante na campanha africana contra Rommel, na Sicília e na Itália. O ‘Victory Car’ ainda levou Montgomery e Winston Churchill pelas ruas de Londres na parada do VE Day, em 1945 - ambos os veículos sobrevivem em museus ingleses, testemunhas mudas da engenharia Humber.
No pós-guerra, a Humber navegou o otimismo dos anos 1950 com atualizações nos Hawk e Super Snipe: motores overhead-valve de 2.6 litros (112 cv) em 1952, e inovações como transmissão automática no Imperial de 1964, rival do Vanden Plas Princess. O Sceptre, uma versão premium do Hillman Minx, foi o canto do cisne, produzido até 1975. Mas o sonho azedou. A insistência familiar dos Rootes em controle total subcapitalizou o grupo, e o fracasso dispendioso do Hillman Imp em 1963 abriu as portas para a Chrysler, que comprou a Rootes em 1967. Sob domínio americano, a identidade Humber diluiu-se: os Hillmans viraram Chryslers, e o último Sceptre Mark III rolou da linha em 1976. A Peugeot assumiu em 1979, rebatizando tudo como Talbot, e o nome Humber mergulhou no esquecimento comercial.
Hoje, enquanto o mundo acelera para veículos elétricos e autônomos, a Humber permanece um capítulo nostálgico da motohistória britânica. Seu museu em Hull abriga 21 exemplares restaurados, de 1932 a 1970, e colecionadores globais restauram essas relíquias de ‘conforto antes da performance’. De bicicletas em Beeston a staff cars em El Alamein, a jornada da Humber nos lembra que, no automóvel, a verdadeira inovação é a que perdura.
